Por Emmanuel Mauricio Teixeira de Queiroz
A Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, estabeleceu uma série de medidas para a prevenção e o combate da pandemia da Covid-19. Entre as medidas sanitárias obrigatórias está a imunização compulsória. A previsão está no seguinte trecho da Lei:
“Artigo 3º — Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020)
I — isolamento;
II — quarentena;
III — determinação de realização compulsória de:
- a) exames médicos;
- b) testes laboratoriais;
- c) coleta de amostras clínicas;
- d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
- e) tratamentos médicos específicos”.
A grande polêmica está na obrigatoriedade da vacina contra o coronavírus, o que nos remete ao passado brasileiro, com o evento de 1904 por conta da vacinação da varíola e o projeto de obrigatoriedade nacional de imunização de Oswaldo Cruz, que desencadeou a Revolta da Vacina [1].
Em 2020 e 2021 vivemos o mesmo questionamento quanto à obrigatoriedade da vacinação contra a Covid -19. Entretanto, atualmente o direito à saúde é uma realidade no Brasil. Não pode ser negligenciado pelas autoridades públicas. A imunização é um direito dos brasileiros. O direito à saúde é uma realidade em nosso Estado de Direito inaugurado com a Constituição de 1988 [2].
Portanto, as ações de preservação da saúde exigem tanto do indivíduo quanto da coletividade uma série de medidas para que seja mantida a saúde, entre as quais está a imunização obrigatória ou a vacinação compulsória.
O direito à saúde compreende, também, a preservação de pessoas que não tiveram contato com a doença, mediante ações do poder público para evitar o contágio [3].
Em contraposição ao direito à saúde está o direito da personalidade de não se submeter ao tratamento, negando o consentimento ao médico para a medida de imunização [4].
De um lado está o direito individual da personalidade, de natureza intransferível, personalíssimo e irrenunciável, de não se submeter a qualquer tratamento de saúde sem o devido consentimento. O direito de escolha diante do tratamento de saúde. De outro lado, está o direito de manter a saúde da população, evitando a disseminação de doenças e promovendo a integridade sanitária, o que, em determinados momentos, significa evitar que o ser humano em contágio sirva de meio de contaminação de outros seres humanos.
É uma questão de complicadíssima resposta. O que prevalece: o interesse individual ou o interesse coletivo?
Mas a resposta foi apresentada pelo último intérprete da Constituição Federal e das leis federais, o Supremo Tribunal Federal, que preservou o direito individual de escolha, no caso da vacinação compulsória, com a possibilidade pessoal de não se sujeitar ao tratamento. Preservou também, na medida, o direito coletivo da saúde, ao estabelecer restrições à liberdade de locomoção do indivíduo não imunizado, com a possibilidade de aplicação de sanção monetária e o impedimento de uso de locais, seja de rápida circulação ou de permanência.
Enfim, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal é o de que pode haver a recusa pessoal no momento da administração da vacina e que tal ato é da vontade da pessoa [5], representa o respeito à sua dignidade. Portanto, é um ato legal e constitucional recusar-se ao tratamento por vacinas.
Por outro lado, é constitucional também o direito/dever do Estado e dos municípios que podem impedir o acesso de pessoas não vacinadas aos locais determinados, promovendo a integridade da saúde pública, restringindo o acesso aos ambientes predeterminados na norma legal, como escolas, estádios, lojas comerciais e o transporte público coletivo.
De modo que o poder público pode restringir o acesso de cidadãos que recusem a vacinação por medidas restritivas legais que podem ensejar multas por descumprimento e o impedimento de frequentar determinadas localidades, impedimento de acesso aos cargos e empregos públicos aos não vacinados e o impedimento de matrículas em escolas ou da simples permanência.
No Brasil, um fato marcante ocorreu no jogo de futebol internacional de maior rivalidade na América do Sul, entre a Argentina e o Brasil, que foi impedido por fiscalização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por conta de jogadores argentinos que não realizaram a quarentena após passar pela Inglaterra, país onde havia a contaminação pela variante Delta do coronavírus [6].
Ou seja, o jogo foi paralisado não por conta da falta de imunização, mas apenas e tão somente pela expectativa, mesmo que improvável, de contágio. A limitação administrativa é prevalente sobre o interesse privado.
Está claro que pode haver proibição de uso e frequência em ambiente escolar em caso de não vacinação, podendo, inclusive, gerar a demissão por justa causa de trabalhadores de escolas, faculdades e universidades [7].
O que se questiona neste breve ensaio é se a proibição de frequência coletiva incidiria no ambiente escolar, tanto para crianças como para adolescentes (ou seja, para os alunos)?
A resposta depende do que a autoridade sanitária nacional, estadual e municipal definiu como grupo etário submetido à vacinação em cada canto deste gigantesco país. Isso se deve à forma estabelecida no território nacional para as políticas públicas sanitárias [8].
Segundo a Anvisa [9], as vacinas adquiridas para a distribuição em solo nacional não são indicadas para crianças (pessoas menores de 12 anos de idade, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente). Há um único imunizante autorizado para o uso em maiores de 12 anos, que é o Comirnaty, da empresa Pfizer.
Até o presente momento, o grupo de pessoas do início da vida até os 12 anos incompletos de idade não será imunizado. Assim, não se pode exigir a imunização desse grupo etário de indivíduos para a frequência escolar. Isso não significa que as demais medidas preventivas estejam afastadas, pelo contrário.
Apesar de ser grupo de não imunizados, deve seguir as demais medidas preventivas, como o uso de máscaras, a limpeza de mãos com o álcool em gel, o distanciamento social etc.
Mas, em contexto distinto, em praticamente todos os estados da federação, os adolescentes estão sendo imunizados. Portanto, a depender do estágio da vacinação em cada município, é possível exigir a imunização de adolescentes (segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, grupo de pessoas de 12 anos de idade até os 18 anos incompletos).
Para os adultos (segundo o Código Civil, pessoas com 18 anos de idade completos em diante até a idade máxima da vida), a vacinação está em pleno curso e, portanto, as exigências de imunização podem incidir e limitar o acesso ao ambiente de ensino. De modo que, tanto para adultos, como para adolescentes, deve ser exigida a imunização para o uso do ambiente escolar.
Existe o risco da instituição de ensino de ser submetida ao eventual processo judicial de responsabilização por danos ocasionados pela contaminação de estudantes no âmbito escolar e os eventos da Covid-19 caso fique provada a sua negligência e o descumprimento das normas impostas pelas autoridades. Diante do risco, recomenda-se a prudência de exigir a imunização do corpo docente e do corpo discente, através de implementação de divulgação das campanhas públicas de vacinação e da conscientização de todos os que frequentam o ambiente escolar.
De modo que a resposta ao questionamento acerca da possibilidade de a proibição da frequência se aplicar a crianças e adolescentes é afirmativa desde que as autoridades sanitárias tenham autorizado a possibilidade de vacinação incondicional para cada grupo etário. É preciso consultar a faixa etária vacinável pela autoridade sanitária local, sendo possível, e até recomendável, a proibição de frequência de alunos não vacinados que estejam na faixa etária coberta pela vacinação.
[1] Sobre a revolta da Vacina consulte a página da internet da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ): A Revolta da Vacina (fiocruz.br).
[2] Segundo Hélio Pereira Dias, em sua obra: Flagrantes do Ordenamento Jurídico-Sanitário, Editora Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 3ª Edição, 2008, ISBN 978-85-88233-20-1, página 309: “Em sede constitucional, verifica-se que as Constituições do Brasil (1890, 1934, 1937, 1946, 1967121) não contemplavam assuntos de saúde e, quando faziam, os abordavam de maneira superficial ou confundindo-os com ações de assistência social, talvez ainda reflexo de um possível posicionamento vetusto de quais prestações de saúde constituíam apenas um gesto de caridade, solidariedade ou dádiva estatal. No conceito moderno, saúde é um direito fundamental do cidadão, que gera, também, para ele e para a coletividade onde vive, obrigações e deveres de participação.”
[3] Segundo Hélio Pereira Dias, na página 304 da obra mencionada acima: “A partição da matéria, geralmente adotada pelos estudiosos, abrange a parte preventiva, ou tutela contra a doença, e a parte repressiva. Por tutela de saúde pública entende-se a ação estatal pronta a reprimir o dano que o organismo humano possa acarretar à saúde coletiva”.
[4] “Código Civil. artigo 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
[5] A posição do Supremo Tribunal Federal foi firmada no julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, que tratam do tema da vacinação obrigatória contra o Covid – 19, e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1267879 que trata do direito individual da recusa à imunização por questões religiosas ou filosóficas.
[6] Segue a matéria jornalística sobre o jogo impedido de acontecer: Anvisasuspende jogo entre Brasil e Argentina por causa da Covid | Congresso em Foco (uol.com.br).
[7] Segue a matéria jornalística sobre a demissão em caso de não vacinação: Empregados podem ser demitidos por justa causa caso não tomem a vacina (correiobraziliense.com.br).
[8] O autor Hélio Pereira Dias explica essa situação que não é exclusiva do Brasil, em seu livro já mencionado acima, na página 309: “Nos países organizados sob a forma federativa, em que coexistem a União, os estados e municípios, como no Brasil, as Constituições Federais costumam prever que à União, compete legislar sobre normas gerais de promoção, proteção e recuperação da saúde, cabendo aos estados legislar supletivamente sobre a matéria. Isso quer dizer que as normas estaduais não podem contrariar aquelas federais, mas complementá-las de acordo com as peculiaridades dos assuntos de natureza local, quando existirem as primeiras, ou preencher as lacunas da legislação federal.”
[9] Segue a matéria sobre a vacina da autorização da Anvisapara a imunização de maiores de doze anos com o imunizante Comirnaty, da Pfizer: Anvisa autoriza vacina da Pfizer para crianças com mais de 12 anos — Português (Brasil) (www.gov.br).
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Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-out-23/queiroz-vacinacao-compulsoria-frequentar-ambiente-escolar